James Lovelock defende que Terra e vida formam sistema único
( por HELIO GUROVITZ)
“O britânico James Lovelock propôs na década de 70 a noção de que a
Terra não poderia ser separada da vida. Ousou considerar o planeta um
superorganismo vivo, que se equilibrava sozinho sempre que
perturbado. Para completar, batizou esse organismo com o nome de
uma deusa grega: Gaia.
Foi a ira dos cientistas e a glória dos místicos. De respeitado cientista,
Lovelock passou a ser visto como louco, herético ou profeta.
Defensores do rigor científico acusavam Gaia de trazer
intencionalidade a algo que não tem consciência: o planeta Terra.
Como poderia a Terra _sozinha_ restaurar seu equilíbrio físico e
químico quando perturbada? Como seres vivos 1 em eterna competição
pela sobrevivência poderiam gerar um ambiente harmônico em Gaia?
A origem da idéia estava nos dois anos que Lovelock passou na Nasa
(EUA). Ele concluiu que as características da atmosfera de Marte
bastam para dizer que lá não há vida. Seria, portanto, inútil enviar uma
Sofreu forte oposição, mas ajudou a montar os aparelhos que estão até
hoje, a bordo da Viking, em solo marciano. Vida em Marte, ninguém
ainda achou.
De volta ao Reino Unido, Lovelock foi para o campo e se tornou
pesquisador independente. Desenvolveu medidores que acabaram por
detectar o buraco na camada de ozônio que envolve a Terra. E
elaborou a hipótese Gaia.
Em 1977, mudou-se para a propriedade rural de Coombe Mill, em St.
Giles on the Heath (sudoeste). Na década de 80, modelos matemáticos
começaram a sugerir que algumas noções trazidas de Gaia talvez
tivessem sentido.
Com o aumento da capacidade dos computadores, tornou-se possível
calcular a interação de centenas de espécies, substâncias químicas e
variáveis físicas.
Para espanto dos pesquisadores, propriedades de equilíbrio e auto22
regulação surgiram naturalmente, sem que houvessem sido
programadas (são as chamadas propriedades emergentes). Não eram
intencionais, mas eram reais.
Um dos mais respeitados biólogos britânicos, John Maynard Smith,
passou a ver um tópico científico válido no que antes considerava uma
religião do mau.
Aos 76 anos, pai de quatro filhos e avô de nove netos, Lovelock
concedeu por telefone à Folha a entrevista a seguir.
Folha - Como o sr. define Gaia?
James Lovelock - Não é simples. A hipótese Gaia surgiu por volta de
1971 e supunha que a Terra regula seu clima e sua química de um
modo que seja confortável para si mesma, e que os pulmões eram
responsáveis por isso.
Folha - Como?
Lovelock - Essa era uma visão incorreta. Aquilo de que falamos hoje é
a teoria de Gaia, que é uma teoria evolutiva, que pensa a evolução dos
organismos vivos do mesmo modo como Darwin fazia.
Mas a evolução das rochas, do ar e dos oceanos não fica separada
disso. Os processos evolutivos são acoplados. Na teoria, formulada
matematicamente, a auto-regulação de clima e oceanos é o que
chamamos propriedade emergente. A teoria é aceitável. Mas a
hipótese original estava errada. Pulmões não regulam mesmo nada.
Folha - Qual era o erro original da hipótese Gaia?
Lovelock - Só havia um modo de os organismos regularem a química.
Era o que a hipótese sugeria. Mas agora nós acreditamos que é o
sistema formado pelos organismos vivos e pela Terra que se regula.
Podemos pensar na Terra como num ninho de cupins. É feito da parte
material com que os cupins constróem o ninho, mais os próprios
cupins que vivem dentro. Tudo junto é capaz 1 de se regular sozinho. O
ninho de cupins é um sistema bem equilibrado.
Assim como nós. Se você estender essa idéia para todo o planeta, vai
entender. Não é que os cupins regulem sozinhos a temperatura do
ninho, mas os cupins e o ninho formam juntos um sistema que regula
sua temperatura sozinho.
Folha - Por que a comunidade se enfureceu e se dividiu contra ou a
favor de Gaia?
Lovelock - A maioria foi contra (risos). Só um pequeno grupo nos
levou a sério. Um grande biólogo britânico, John Maynard Smith,
considera agora que a teoria de Gaia é um tópico científico válido. Há
apenas três anos, ele se referia a ela como uma religião do mau.
Folha - Recentemente uma série de trabalhos parecem dar força à
teoria de Gaia. O sr. poderia mencionar os principais?
Lovelock - Não muito longe de você, em São José dos Campos, houve
uma reunião na década de 80 sobre geofisiologia da Amazônia.
Discutiu-se uma visão similar a Gaia do mundo e da Amazônia.
As conclusões foram publicadas num livro intitulado "A Geofisiologia
da Amazônia". Vejo esse livro como uma espécie de ponto inicial,
quando cientistas se reuniram para discutir Gaia a sério.
Pessoas que fazem modelos em centros climáticos começaram a
incluir a biosfera em seus modelos. Quando fazem isso, a não ser que
o façam de acordo com Gaia, os modelos não funcionam, ficam
instáveis e caóticos. Quando o fazem de acordo com Gaia, obtêm
previsões interessantes.
Recentemente tivemos um resultado de um centro no Wisconsin
(EUA) de que florestas boreais escuras da Sibéria e do Canadá agem
de modo a aumentar o aquecimento do planeta.
Folha - O sr. poderia explicar isso em mais detalhes?
Lovelock - Sim. As florestas escuras crescem em regiões perto do pólo
Norte. Se você olhar o formato das árvores, elas são altas, escuras e
encobrem a neve. Vistas do espaço, as florestas são todas escuras. Isso
muda o lugar, de modo que toda a região é aquecida muito mais na
presença da floresta.
Várias outras evidências têm surgido. Ainda acho que a melhor prova
para Gaia vem da comparação da Terra com Marte e Vênus.
Nossa atmosfera e nosso clima são consequências da vida. Se a vida
fosse removida da Terra, as mudanças levariam o planeta a ser algo
entre Marte e Vênus. Seco, quente e com gás carbônico como o
principal gás atmosférico.
Folha - Em 1994, o sr. publicou na revista "Nature". Há quanto tempo
o sr. não publicava em revistas tradicionais?
Lovelock - Seria incorreto dizer que fui banido (risos). Sou membro
da Sociedade Real. Fui eleito presidente da Sociedade de Biologia
Marinha. Também sou um membro visitante em Oxford. Não estou
perdido ou vivendo numa selva. Para cientistas americanos, talvez,
porque certa vez disse que era absurdo falar em vida em Marte. Mas
essa é uma razão política.
Folha - O sr. acha que cientistas tentam evitar a teoria de Gaia como
algo que pode ter implicações religiosas?
Lovelock - Você está provavelmente certo. O 1 interesse em Gaia por
parte de grupos religiosos tem muitas desvantagens.
Posso compreender a intenção deles, mas isso repele cientistas que
possam estar interessados. Como não tenho direitos sobre o nome
Gaia, uma vez que introduzi a idéia, ela está em domínio público. No
século passado, Darwin também passou por dificuldades com o termo
darwinismo social.
Folha - O sr. crê em Deus?
Lovelock - Nunca acreditei em Deus, mas não sou um ateu. Acredito
que vivemos não só num lugar estranho, mas muito mais estranho do
que jamais poderemos imaginar (risos).
Folha - No último congresso internacional sobre o clima em Viena,
chegou-se à conclusão de que o ser humano é responsável pelo
aquecimento global. Como conciliar o equilíbrio de Gaia com esses
seres "inteligentes"?
Lovelock - É preciso lembrar que esse modelo tem 3,5 bilhões de
anos. O homem viveu nele por um tempo muito curto.
É um sistema notavelmente estável. Chegamos muito tarde e
representamos uma perturbação. Mas principalmente para nós
mesmos, não tanto para o sistema.
Escolhemos alterar a atmosfera quando o sistema está num estado
doente. Foi sobre isso que escrevi na "Nature". Achamos que a
glaciação é o estado saudável de Gaia e períodos intermediários são
um tipo de febre. É a hora errada para liberar gases do efeito estufa.
É como se eu ou você tivéssemos febre e colocassem lâmpadas
quentes perto, de modo que a febre aumentasse. Não é sensato.”